sábado, 24 de maio de 2008

Capítulo 03

Capítulo 03

Por dois dias, eles se mantiveram quietos aguardando sempre com sobressalto um possível chamado da Diretora Heloisa que os puniria pela falcatrua na hora do teste final. Como nada acontecera, relaxaram e retomaram a alegria que sempre mantinham ao lembrarem que eram os últimos dias de orfanato.
No entanto, essa alegria durou apenas três dias. No final da manhã eles foram convocados para uma audiência com a diretora pouco depois do horário de almoço. Os três se assustaram, no entanto, Soleno que era sempre muito calmo, os advertiu da necessidade de manter a negação como uma arma, eles poderiam ter desconfiado, mas dificilmente teriam como provar. Urando esboçou o discurso que fariam. Deviam alegar terem estudado juntos e não encontraram dificuldades no testes.
- Essa será a verdade que teremos de nos convencer primeiro, antes de conversar com a diretora. – Disse Bernardo aflito. – E se quiserem outro teste?
- Espero que a lua não encontre o sol! – Disse Urando com ar pensativo. – Vamos nos ferrar se eles descobriram alguma coisa.
Estavam tão agoniados e nervosos, que mal conseguiram engolir um pouco da comida, os olhos permaneciam grudados nos ponteiros dos relógios dos corredores e refeitório. Pontualmente às duas da tarde, entraram na sala de espera do gabinete da diretora tentando se mostrarem calmos e confiantes. O secretário, o velho Facunha, os olhou por cima dos óculos caídos no nariz e sorriu. Imediatamente anunciou pelo comunicador a chegada dos rapazes depois disse em tom preocupado.
- A coisa parece grave! – Ele olhou em volta e abaixou os olhos para os papeis sobre sua mesa.
- Venham! – Disse Heloisa de maneira seca abrindo a porta do gabinete acenando para os três.
Assim que eles passaram pela porta, ela fechou e indicou com a mão um sofá no canto da sala. Em seguida, sentou numa poltrona e ficou em silêncio olhando o teto enquanto esfregava as mãos tentando descobrir a melhor maneira de iniciar a conversa.
- Estamos com um problema e gostaria muito da ajuda de vocês!
- Se for possível...! – disse Urando sacudindo os ombros.
- Sabemos que vocês três se comunicaram durante os testes finais, mas não conseguimos saber como... – ela encarou demoradamente Urando. – Mesmo sem provas, podemos tornar a vida de vocês mais difícil.
- Não consigo entender o que pretende com essa acusação. – Disse Soleno nervoso.
- Deixe de ser cretino! – Heloisa disse com irritação. – Não pretendo perder tempo, sei que um de vocês vai querer me contar os detalhes dessa artimanha e posso garantir, que só um culpado será punido. Preciso de um exemplo, em caso contrário, amanhã teremos muitos problemas como esse para resolver.
- Estudamos juntos... – Bernardo gaguejou.
- Deixe de falar asneira, Bernardo! – Interrompeu Heloisa. – Você e Soleno saiam agora, preciso conversar com Urando. – ela se impacientou. – Me aguardem, depois chamo de volta.
Os olhos dos dois se fixaram rapidamente em Urando que com um gesto de cabeça mandou que saíssem. A diretora deu um longo suspiro ao ouvir a porta se fechando e voltou a ficar contemplando o teto e esfregando as mãos.
- Meu menino! – Ela falou com voz delicada. – Tenho tido muitos problemas por sua causa tentando justificar para doutora Gervina suas atitudes impulsivas e fora de controle nos últimos seis ou sete anos, mesmo assim, não consigo deixar de gostar de você. – ela levantou e ficou andando por algum tempo em silêncio, repentinamente se voltou para o rapaz. – Posso solicitar um novo teste individual e tenho certeza que seus amigos vão se sair muito bem – Disse com ironia.
- Não sei o que pretende descobrir. – Indagou Urando com firmeza.- O que realmente quer?
- Os detalhes, a maneira como tudo aconteceu. – Ela deu de ombros. – Tenho uma proposta que talvez lhe convença de uma vez por todas.
- Estou ouvindo! – Disse Urando entediado.
- Seus amigos serão normalmente encaminhados para os empregos oferecidos no nível de conhecimento deles, quanto a você, tenho certeza que poderei relevar, embora não possamos oferecer o que havíamos planejado. – ela voltou a sentar na poltrona. – Com seus conhecimentos, poderíamos lhe oferecer uma vaga de controlador do sistema ferroviário municipal, a Satter tem mais de metade das ações, no entanto agora só poderemos esperar que se torne um bom mecânico de trilhos e esquecemos tudo que aprontou até agora.
Enquanto a diretora fingia uma preocupação exagerada, Urando sentia que estava sendo manipulado, mas não via uma saída naquele momento, deveria ser prudente para evitar problemas maiores para seus amigos. Estava numa armadilha na qual não poderia se mostrar inteiramente como o rebelde que sempre fazia de sua personalidade um problema para o orfanato, precisava recolher suas armas, aquela seria uma batalha que não poderia manter.
- Quais os empregos para meus amigos? – Indagou repentinamente.
- O idiota do Bernardo, poderia ser contratado pelas industrias químicas, será um bom controlador de estoques. Quanto ao nosso querido Soleno e suas poucas habilidades mecânicas, tem futuro no Complexo de Vestuário profissional, pelo menos se mostrou competente com os desenhos.
- Acho que não podemos negociar! – Disse Urando com desdém.
- Que pena! – Ela sorriu com cinismo fingindo não ter escutado o rapaz. - Eles ficarão sem os certificados de qualificação, vocês três serão expulsos da escola antes de concluírem o curso. – Disse Heloisa indicando a porta com a mão para Urando. – Marcarei novos testes isolados, na próxima semana.
- Está certo! – Disse Urando com ar de preocupação.
- Estou esperando! – Disse Heloisa cruzando as mãos sobre o peito.
- Usei um receptor de alta freqüência e um transmissor de impulsos magnéticos, acoplados num único embolo gerador de sinais cíclicos, para controlar tudo lancei mão apenas de um pequeno apito para cachorros.
- Não estou entendendo. – Heloisa coçou a cabeça.
- Joguei pela janela um dardo dirigível munido com um embolo receptor e um transmissor. E a deixei aberta na véspera, acertei bem ao lado da luminária e toda vez que eu soprava o apito surdo, o ciclo da corrente elétrica se alterava e a luz piscava, assim era só contar quantas vezes a sombra de cada um oscilava de maneira muito rápida em intervalos constantes. – Ele suspirou. – Uma alternativa simples para quem esperava sofisticação.
- Não nego que foi esperto! – Heloisa suspirou. Que desperdício de talento!
- Fiz a minha parte, espero que a senhora faça o que me prometeu!
- Acredito que poderia alçar grandes pretensões, mas sua rebeldia é um entrave. Vou sentir saudades de sua petulância, mas não esqueça que sempre procurei uma maneira de aliviar seus pecados. – Ela estendeu a mão para o rapaz. – Lá fora, tenha mais cuidado, nem sempre podemos vencer um confronto se não estivermos realmente preparados!
- Obrigado pelo conselho! – ele saiu da sala e deixou a diretora pensativa.
Ao passar pelos amigos que o seguiam com olhos esbugalhados e muita tensão nos semblantes, fez um sinal positivo com o polegar e voltou para seu alojamento. A chuva no lado de fora parecia que nunca mais cessaria. Enquanto caminhava pelo corredor deserto do orfanato, refletia sobre a vida e não gostava de saber que seu destino estava de acordo com o desejo da Corporação Satter, sentia-se como um animal aprisionado que engordava para servir de alimento para uma fera faminta. Assim que deitou na sua cama, ficou contemplando pela vidraça a paisagem triste de um dia de inverno.
Quando seus amigos retornaram, estavam saltitantes, se mostravam eufóricos com as indicações de emprego que a diretora Heloisa havia oferecido. Ao perceberam a melancolia de Urando, esfriaram a alegria e congelaram seus sonhos. Depois de insistirem muito para saber o que acontecia ao amigo escutaram uma explicação pouco convincente.
- Esqueçam minhas manias, estou como sempre imaginando as segundas intenções de cada ação da Diretora.
- Recebemos nossos cartões de encaminhamento. – Disse Soleno mostrando o cartão.
- Ao nos apresentarmos teremos de cadastrar uma senha permanente com oito dígitos. – Completou Bernardo. - Você recebeu o seu? – Indagou Soleno
- Ainda não. – Urando estendeu a mão e pegou o cartão de Bernardo. – Eles são diferentes desses que estamos acostumados.
- Esses números sobre a barra de leitura ótica, são as especificações profissionais do local de trabalho, setor, endereço... – Apontou Soleno.
- Vou anotar! – Disse Urando pegando seu pequeno agendador eletrônico.
- Não poderá identificar nada, não tem acesso ao banco de dados. – Disse Bernardo dando de ombros enquanto recebia o seu cartão de volta.
- Aqui dentro não tenho mais acesso, mas nada me garante que lá fora eu não possa fazer uma checagem e encontrar vocês. – Urando pegou o cartão de Soleno.
- Vamos nos separar amanhã logo cedo. – Soleno sentou na cama ao lado do amigo. – Teremos de marcar um encontro, lá fora estaremos sem ter como promover nossos encontros.
- A cidade grande vai separar nossas vidas! – Exclamou Bernardo melancólico. – Vou sentir muita saudade de nossas conversas, tenho medo do mundo.
- Acho uma boa idéia manter contato se for possível! – Disse Urando.
- Tudo é possível! Dentro de um mês, nos encontraremos na estação de trem da escola. – Soleno coçou a cabeça. – Perto das escadas.
- Combinado! – Bernardo sorriu se animando. – Aproveitamos e comemoramos com atraso a nossa independência.
- Por mim, tudo bem! – Urando estendeu a mão para os amigos.