quinta-feira, 29 de maio de 2008

Capítulo 08

Capítulo 08

No seu primeiro dia de folga, Urando acordou angustiado experimentando com mais intensidade a falta dos seus companheiros do orfanato, olhou em volta buscando alivio, mas não havia nada realmente seu naquele pequeno apartamento. Lembrou mais uma vez do seu professor de Defesa pessoal, Lin Ping que lhe dera o endereço de uma pessoa amiga na cidade para que continuasse treinando. Embora não gostasse de competições, sentia prazer em fazer aqueles exercícios típicos das lutas marciais.
Depois de tomar um banho, começou a procurar onde havia colocado o papel de embalagem de chocolate com o endereço escrito por Lin Ping. Por quase meia hora, revirou de maneira ansiosa seus poucos pertences, já nervoso pensava em desistir quando finalmente encontrou o que buscava num pequeno bolso da sacola que já havia inspecionado anteriormente. Ao ler o que estava escrito, soltou uma gargalhada sonora, era no prédio ao lado.
Ao sair do prédio onde morava, Urando sentiu o vento gelado penetrar suas roupas e a chuva cair em seu rosto de maneira dolorida, era fina e fria, cortava feito fio de navalha afiada. Jogou o capuz do casaco e foi até o salão de entrada onde morava a tal pessoa chamada Jumi, indicada pelo professor. No papel estava escrito quinto andar, ele buscou no quadro de comunicação, apartamento 506 e apertou o botão. Por varias vezes tentou sem sucesso, dando de ombros já estava desistindo quando uma mão pousou delicadamente em seu braço.
- Jumi está trabalhando!
Ele se voltou rapidamente e viu a mocinha de cabelos negros que sempre observava diariamente da sua janela. Era muito bonita. Olhos verdes, cabelos negros e lisos compondo um rosto sublime onde os lábios sensuais exibiam um sorriso encantador. Quase de sua altura, estava vestida de maneira discreta, uma calça marrom e blusa branca.
- Você é a moça que mora no apartamento em frente da minha janela? – Ele perguntou de maneira tímida.
- Meu nome é Morga! – Ela estendeu a mão.
- Sou Urando!
Os dois ficaram algum tempo em silêncio sem saber o que dizer, mas logo Morga abriu a porta do prédio e se despediu deixando o rapaz com ar de palerma paralisado completamente, de boca aberta sem conseguir se mover. Ele havia se encantado com a moça desde que a vira pela primeira vez da janela, mas agora que viu pessoalmente esse encanto era ainda maior. Havia nessa moça uma magia que seria impossível de ser descrita. Sua voz possuía uma musicalidade envolvente, lembrou das lendas antigas onde belas mulheres meio peixe meio gente, chamadas de sereias que viviam no mar, naufragavam navios encantando marinheiros.
Se estremecendo para sair do transe, Urando olhou em volta e suspirou sentindo seu coração batendo num ritmo acelerado. Aquela moça era muito mais bonita quando vista de pertinho, mais do que imaginara ao vê-la numa distancia de quinze metros. Mesmo depois de respirar profundamente varias vezes, o seu coração ainda estava palpitando. Dando de ombros buscou se acalmar, precisava ser pratico e fugir dos devaneios para pensar no que faria com seu tempo ocioso até à noite, onde por certo encontraria Jumi.
A chuva continuava maltratando quem ousava se expor, o vento estava cada vez mais forte e as ruas desertas. Sem recursos financeiros mais disponíveis, não haveria nenhum lugar agradável para onde Urando seguisse e deixasse o tempo passar de maneira agradável. Andou rapidamente todo encolhido até a loja de comidas rápidas, pegou uma caixa de carne de avestruz assada, um saco de pipoca, duas garrafas de cerveja. Olhou discretamente a portaria do prédio vizinho e subiu para seu apartamento murmurando repetidamente “Morga”, com ar de felicidade repentina refletida no semblante.
Enquanto observava a chuva pela janela e comia pipoca, abriu uma cerveja e viu Morga passeando nervosa de um lado para o outro falando num comunicador de bolso. Estava enrolada numa toalha, cabelos molhados e se movimentava com sensualidade embora não demonstrasse ter essa intenção. Logo lhe veio uma onda de realidade que sua pouca experiência de vida parecia ter menosprezado. Aquela bela mulher não se interessaria por ele, um fedelho que nem conseguia sustentar a própria existência de maneira satisfatória. Mesmo assim, estava feliz, encontrara uma desculpa para aguardar o tempo se tornar mais pródigo.
O rapaz começou a sentir seu corpo incendiar, largou o saco de pipoca no chão, a cerveja sobre a janela e correu para tomar um banho. Ficou por mais de dez minutos naquele banho relaxante e quente, apenas permitindo o próprio corpo clamar por um contato de prazer que lhe parecia inacessível. A chuva não parava, as idéias na cabeça de Urando se multiplicavam e não havia nada para ser feito.
Durante o resto do dia, ele tentou evitar olhar pela janela, mas havia uma atração impossível de ser controlada diante da falta de alternativa para ocupar o tempo. Viu quando a moça deitou para dormir quase despida, quando acordou e preparou uma refeição, foi tomar outro banho, trocar de roupa e sair. Olhou para o relógio, faltavam vinte minutos para as cinco.
Rapidamente saiu do apartamento e correu para tentar forçar um segundo encontro. Alcançou Morga já na rua, ela estava magnífica com um casaco bege cobrindo seu belo corpo, Urando sabia que vestia por baixo um vestido vermelho, mas, não ousou fazer qualquer comentário, apenas acenou para ela que seguiu sorridente na direção da estação de trem.
Mais uma vez insistiu no apartamento 506 e dessa vez escutou a voz de uma mulher querendo saber quem a procurava. Ele se identificou gaguejando, dizendo ser um enviado do professor Lin Ping. Ela imediatamente autorizou a subida dele até sua casa.
O prédio era mais sofisticado do que aquele no qual morava. Os corredores eram mais iluminados e com gravuras nas paredes. Ao saltar no quinto andar, percebeu que do lado impar do corredor havia mais portas do que no lado onde estaria o apartamento de Jumi. Não conseguia entender o motivo disso, mas quando uma mulher negra, de altura mediana, semblante com ar desconfiado e expressão cansada abriu a porta, ele descortinou a diferença. O apartamento era muito maior.
- Em que posso ajudar. – Ela disse sem mandar que ele entrasse.
- O professor me recomendou buscar seu auxilio.
- Não vejo razão para ele ter feito isso...
- Gosto de praticar por prazer um pouco de defesa pessoal. Ele me disse com seu jeito de filosofo, que eu encontraria em você a pessoa certa. – Ela mandou que entrasse com um gesto de cabeça e ele prosseguiu na explicação. – Fui criado no orfanato da Satter e a cidade para mim é uma coisa muito estranha.
- Aceita um chá? – Ela perguntou acenando para ele segui-la até a cozinha.
Ele olhou em volta e viu que realmente o apartamento era bem maior, um quarto com sanitário, sala e cozinha. Era decorado com requinte e bom gosto, embora nada luxuoso. Ela colocou água fervendo em duas xícaras e um saquinho de ervas. Se voltou repentinamente fitando o rapaz.
- Não estou querendo me livrar de você, mas não tenho tempo para dar aulas. – Ela entregou uma xícara para Urando. – Tenho vinte nove anos, quase perdi o limite de idade para promoção, estou me preparando para fazer graduação de alto comando na polícia, estudo seis horas e trabalho outras seis, não posso esquecer que ainda tenho de arrumar um tempo para descansar.
- Eu entendo! – Urando suspirou de olhos baixos grudados na xícara.
- No entanto, gostei de você, acho que posso combinar um ou dois treinos por semana, me fará companhia na programação de preparação e condicionamento. – Ela sorriu. –Meu pai mandou você, eu tenho de procurar não decepcioná-lo.
- Seu pai...? – Urando não acreditava no que escutava embora os olhos dela fossem parecidos.
- Meu nome é Jumi Ping. – Ela gargalhou diante do espanto do rapaz.
- Por essa eu não esperava!
Eles combinaram para o dia seguinte, uma experiência logo cedo, aproveitariam para combinar como seriam os treinos. O rapaz bebeu o que restava do chá e disse que não incomodaria mais. Ela o acompanhou até a porta. Antes de sair, ele se voltou com ar de duvida.
- Posso lhe perguntar uma coisa?
- Claro! – Ela sorriu.
- Conhece uma moça chamada Morga?
- Do 2831, moça discreta. – Jumi maneou a cabeça. – Não a conheço, apenas lhe socorri uma vez no elevador, desfaleceu sem motivos aparentes, eu a levei pra casa. Acho que trabalha no período noturno.
- Muito obrigado!
O rapaz apertou a mão de Jumi e se encaminhou lentamente para o elevador. Ao apertar o botão de chamada, olhou para a porta do apartamento de onde saíra e viu que continuava sendo observado por aquela mulher negra e esbelta que trabalhava na polícia, filha de um chinês adorável e cheio de mistérios. Acenou e entrou no elevador.
Para Urando, a sua chegada na cidade havia sido muito diferente do que poderia imaginar. As surpresas se acumulavam e em breve, teria muito para contar aos amigos quando chegasse o grande momento de encontrá-los. Ele jamais poderia saber que o redemoinho da vida estava apenas começando.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Capítulo 07

Capítulo 07

Durante as outras duas semanas antes da folga, Genaro se mostrou indiferente ao rapaz, não falava com ele diretamente e o escalava para os serviços mais pesados. Por sua vez, Urando sentia falta da amizade, mas não sabia como resolver aquela situação já que não pretendia se expor aos perigos de uma aproximação que causasse constrangimento para ambos.
No ultimo dia de trabalho naquela semana antes de folga, sentia-se cansado e ao chegar em casa para repousar, sua cabeça estava tomada por idéias confusas. A solidão era um sintoma que rondava os habitantes da cidade, talvez fosse esse o motivo do bar “Lamento” ter progredido.
Costumava escutar em algumas conversas no trem quando voltava para casa, pessoas de diversas atividades e status social comentarem que buscavam o consolo dos autômatos para desabafar suas frustrações. Talvez fosse uma alternativa a ser refletida, no momento, não deveria desperdiçar seus créditos, mas assim que fosse possível, conheceria aquele lugar.
Sentia-se muito mal trabalhando naquela porcaria de emprego, sempre nos mesmos locais, correndo de um lado para o outro penetrando nos túneis desagradáveis com a sensação de não ter alguém ao lado para dividir seus medos. Não havia espaço para relacionamentos afetivos naquele mundo de trabalho e competição diária pela sobrevivência, não negava a si mesmo a inquietação dessa nova vida sem um só amigo para desabafar suas frustrações.
Agora entendia algumas pessoas que se desesperavam ao ponto extremo de tomarem a decisão de por um fim na jornada da vida. O suicídio era uma fuga, ultimo alento de controle de si mesmo num mundo que não permitia equívocos ou escolhas. A morte não significava uma derrota, talvez fosse até um premio, quando não se possuía nada para comemorar. Sorrindo das idéias absurdas que lhe tomavam a mente, relembrou que uma certa vez fora repreendido por Lin Ping quando disse que a morte era tão boa que só acontecia uma única vez na vida de cada individuo.
As palavras do velho professor lhe vieram na memória de maneira muito clara, “Sempre devemos comemorar a vida, ela é sagrada e não podemos acreditar que as coisas acontecem por acaso, nós as provocamos e devemos saber saltar todos os obstáculos”. Na sua simplicidade filosófica diária, Lin Ping sabia falar coisas que deveria entender por experiência própria, para Urando a vida estava apenas começando, ainda poderia ser um presente comemorado, bastava se acalmar, aquietar o espírito rebelde e aguardar o momento certo para retomar o controle de sua vida sem cair na mediocridade.

terça-feira, 27 de maio de 2008

Capítulo 06

Capítulo 06

O almoço no restaurante no outro lado da rua era muito simples, apenas um grande prato que retiravam de uma estufa automática depois de passarem seus cartões na ranhura lateral. O sabor não era ruim, mas todos os alimentos possuíam um único sabor. Genaro aproveitou aquele momento para explicar ao seu novo operário, outros detalhes de como deveria sobreviver naquele local.
Fez questão de salientar que Urando arrumaria suas coisas e faria a limpeza, não possuía dinheiro para contratar serviços dessa natureza, até que fosse promovido e mudasse para dos condomínios fechados. Tudo que pagasse seria descontado diretamente do salário.
- Quem mora nesse lado da cidade, sempre tem pouco dinheiro, o aluguel é mais barato porque os prédios são mais antigos e menos confortáveis. – Disse Genaro.
- Você poderia morar num condomínio? – Indagou Urando.
- Talvez, mas prefiro essa movimentação incessante do centro, fico mais perto das pessoas que trabalham comigo. – Disse Genaro contendo um arroto com a mão. – Vamos andar um pouco pelas ruas mais próximas.
A maneira como Genaro falava, começava a se tornar muito afetada, havia algo estranho na demora fixa de como olhava para Urando algumas vezes, mas a sua simpatia continuava sendo primorosa. Os dois caminharam algum tempo em silêncio, o rapaz observava os detalhes em volta procurando identificar pontos de referencia para se localizar. Os nomes das ruas, lojas e até anúncios virtuais nas paredes dos prédios, tudo poderia ser importante num futuro bem próximo.
Durante a primeira semana de trabalho, Urando chegava em casa completamente exausto. O serviço era cansativo, andavam pelas linhas eletromagnéticas fazendo inspeções e toda vez que localizavam um eletrodo ou aterramento defeituoso faziam as substituições das placas. Saiam em um único grupo varrendo a linha com os equipamentos de leitura. Aos poucos se dividiam, toda vez que aparecia um defeito, alguém ficava para trás.
Para Urando, aquele serviço era desagradável, mas conseguia suportar seu medo e suas frustrações imaginando que um dia estaria de frente com uma oportunidade para se livrar dos túneis e dos perigos que estava sendo obrigado a enfrentar. Todo o trabalho era feito nos intervalos programados, a cada vinte minutos, teriam de correr para os abrigos laterais da linha e um trem passava numa velocidade imensa quase os arrastando como folhas de papel ao vento.
Depois de alguns dias, finalmente, o treinamento dele estava concluído e Genaro o avisou que no próximo turno, já estaria por conta própria. Até aquele momento, os colegas de trabalho se mantinham sempre distantes, de péssimo humor e deixavam claro que eram de pouca conversa. O único que sempre parecia simpático era Genaro, mas havia nele algo que fazia com que Urando se mantivesse alerta.
Naquela noite, teria mais tempo para descansar, no dia seguinte, só entraria no serviço depois do meio dia. Depois que chegou ao apartamento, olhou o relógio e viu que passavam das duas da tarde, não havia almoçado e seu estomago reclamava. Tomou um banho, trocou de roupa e desceu até uma pequena loja de comidas rápidas que funcionava no andar térreo do seu prédio. Comprou duas caixas de macarronada e voltou para casa.
Enquanto comia diante da janela, viu mais uma vez a moça morena que também comia no seu apartamento no prédio ao lado. Ele já sabia que ela não era uma arrumadeira e sim, uma moradora solitária como ele próprio. Era uma moça bonita, talvez um pouco mais velha, no máximo uns dois ou três anos. Ao ver o rapaz acenou para ele como já fizera algumas vezes e em seguida fechou a cortina, mas já não se mostrava irritada.
Na cabeça do rapaz circulavam idéias perdidas de uma possível conquista, nunca havia namorado e se deliciava ao imaginar como seria bom ter uma mulher em seus braços para aproveitar os momentos que agora era obrigado a viver de maneira vazia e sem sentido. Depois de comer, escovou os dentes, e caiu na cama, sentia o corpo dolorido e a alma aos pedaços. A falta dos amigos lhe fazia um buraco no coração e azedava as horas. Dentro de pouco mais de um mês, não faltaria ao encontro que haviam marcado, estava ansioso por notícias de Bernardo e Soleno.
Repentinamente lhe ocorreu à história que havia lido no livro que Soleno lhe emprestara sobre a invasão da Terra por seres de outro planeta. Sorriu para si mesmo, as mulheres belas deviam ser perigosas, as verdadeiras invasoras que assumiam o controle da mente de um homem. Mesmo que fossem calmas e discretas, produziam efeitos de uma guerra no interior de quem as desejava. Bastava ver como o amigo Bernardo se angustiava por não ter conhecido sua mãe, uma mulher que nunca fizera parte da vida dele, mas se mantinha com toda força na alma de um filho. Sempre era uma mulher a ocupar a maior parte dos pensamentos de um homem, não importava se os desejos eram eróticos ou simplesmente carência de afeto.
Caindo em seus próprios devaneios, tentou buscar no coração um lugar para pensar na mãe, mas esse sentimento não lhe corroia, era algo que se afastara e não poderia mais caminhar em suas veias. Como o seu velho mestre Lin Ping o alertara, a vida na cidade grande era bem diferente, não se deixaria iludir pela solidão, teria de buscar forças para superar seus medos e suas angustias e aproveitar todas as experiências que fossem possíveis de experimentar sem se perder no vazio espiritual.
Antes de cochilar, escutou o ronco de uma trovoada muito forte, começava a chover novamente depois de vários dias de estiagem. Se encolheu na cama e caiu num sono profundo por mais de três horas, só acordou quando alguém bateu de maneira insistente na sua porta. Levantou-se com preguiça e os olhos ardendo para atender.
- Salve, meu querido! – Disse Genaro ao ver o rapaz. – Hoje é um dia especial, vamos aproveitar.
- Não estou entendo o motivo de tanta alegria! – Disse Urando desconfiado.
- Consulte o seu terminal bancário, hoje é dia de pagamento semanal. – Disse apontando.
Urando foi até o balcão que separava a cozinha do salão e pegou o seu cartão, voltou com passos preguiçosos e fez a consulta. Escutou o colega de trabalho lendo por cima de seus ombros.
- Urando Venceslau, eletrofísico médio, Sistema Urbano de Manutenção Ferroviária, sangue Fator/RH O Negativo. – ele tossiu duas vezes. – Tipo muito raro..., Hoje em dia quase não existem pessoas com esse tipo sanguíneo! – Ele continuou a leitura. - Valor em créditos, 250. – Genaro deu um muxoxo. – Recebeu pouco!
- Me avisaram, por um tempo, um terço do que ganho vai pagar a minha divida com a Satter!
- Acho isso um absurdo, mas não adianta lamentar, vamos conhecer um pouco da diversão que a cidade oferece.
- Não posso gastar muito...
- Estou convidando! Interrompeu Genaro sorrindo de maneira maliciosa.
Pela primeira vez desde que saíra do orfanato, as palavras de seu professor Lin Ping começavam a fazer sentido. Precisava ficar alerta, algo lhe dizia que as intenções do seu chefe poderiam ser perigosas. Depois de trocar de roupa, saiu de seu apartamento repetindo mentalmente para si mesmo “Na cidade, nem sempre as pessoas são o que aparentam”.
Eles circularam por diversas casas noturnas, beberam algumas cervejas e assistiram a um show publico numa praça no centro velho da cidade onde uma banda se apresentava. Ao passarem diante um grande bar, instalado num prédio magnífico com uma escadaria imponente e portas largas de vidro, leram juntos num imenso letreiro luminoso “Lamento”, Genaro explicou que aquele era o principal, os outros eram pequenos e não se comparavam.
- Vamos marcar para na próxima semana conhecer esse ai! – Disse suspirando. – Estou faminto.
Os dois entraram num pequeno restaurante e depois de comerem, voltaram para casa. Quando entraram no prédio, Urando sorriu para si mesmo, havia feito um julgamento injusto das intenções de Genaro. Ele se portara de maneira normal como quem pretende fazer uma amizade. No elevador, mesmo sem olhar, sentiu que os olhos do amigo não desgrudavam dele, mesmo assim, não poderia reclamar de mais nada.
Quando saíram do elevador, ele estendeu a mão para Genaro e agradeceu pelo divertimento. O outro o encarou de maneira maliciosa, e o puxou num abraço apertado em seguida tentou beijar os lábios do rapaz que imediatamente reagiu se esquivando e o empurrando para o lado.
- O que aconteceu? – Indagou Genaro com cinismo. - Vai me negar seu afeto?
- Tenha certeza que nunca lhe negaria meu afeto e amizade, mas infelizmente não me sinto atraído por homens. – Até amanhã e... não se aborreça.
- Seu idiota! – Genaro se mostrou irritado e saltou sobre o rapaz e o agarrou novamente.
- Não se arrisque tanto. – Disse Urando o golpeando no estomago para se livrar da situação.
Sem dizer mais nada, o rapaz entrou no seu apartamento sem olhar para traz e se jogou na cama. Ficou algum tempo meditando com os olhos grudados no teto e pensou “A lua encontrou o sol”. Sabia que agora teria um problema para resolver no dia seguinte, estaria na mira de Genaro que se mostrara perigoso. Ainda nervoso, despiu a roupa e se deixou ficar inerte por um bom tempo até que adormeceu.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Capítulo 05

Capítulo 05

Pela manhã, muito cedo, Urando já estava acordado e com toda a sua bagagem arrumada. Remexeu nas suas gavetas em busca de algum objeto esquecido, arrumou sua cama, abriu e fechou a janela dezenas de vezes, andou em círculos com passos miúdos suspirando pelo quarto com o olhar sempre buscando os ponteiros do relógio. Finalmente resolveu não perder mais tempo. Estava na hora de concluir o seu período de vida protegida, o mundo lhe acenava para os perigos inerentes ao processo de independência. Pegou sua sacola e saiu do quarto para a última refeição naquele lugar.
Ao comer lentamente a sua refeição matutina, sentia-se ansioso e o estomago doía, estava sentindo muito medo, mas teria de enfrentar com dignidade o início de sua liberdade. Acenando para os que ainda teriam de ficar por algum tempo mais, saiu do orfanato e respirou profundamente dando uma última olhada naquele conjunto de quatro prédios iguais separados por cercas vivas escondendo uma tela de aço.
Depois de respirar profundamente, apertou a alça da sacola na mão e prosseguiu caminhando sem pressa na direção da estação de trem. Apresentaria-se logo que chegasse à Central, no subsolo do coração financeiro da grande cidade. Agora não haveria como recuar já estava sozinho nessa empreitada e deveria tomar suas próprias decisões.
Os poucos minutos dentro do trem, foram completamente estranhos, não sabia precisar quantas estações já haviam passado, seus olhos ardiam e sua boca estava ressecada. Quando escutou o aviso de chegada na Estação Central, estremeceu, mas continuou seu caminho e logo identificou o escritório da administração. Imediatamente foi ao balcão de informações como, lhe haviam determinado e mostrou seu cartão de encaminhamento para uma moça que o recebeu com um sorriso plastificado.
- Um minuto, consulto e lhe encaminho! – ela tomou o cartão e fez a leitura ótica. – Sala seis, passe pela porta e siga em frente. – devolveu cartão e apontou a porta.
- Muito obrigado!
- Se apresse! – ela se voltou para o computador.
Sem discutir, o rapaz entrou pela porta indicada e viu que haviam dezenas de portas numeradas num corredor muito iluminado e largo. Havia um odor de desinfetante no ar e sem conseguir se conter ele espirrou algumas vezes. Ao parar diante da porta numero seis, voltou a olhar em volta, tudo muito limpo e deserto, parecia que estava entrando por um túnel que o levaria para um mundo fora da realidade.
Assim que abriu a porta encontrou outro corredor estreito e duas portas, um homem vestido de macacão branco, veio ao seu encontro. E sem dizer nada apontou para que sentasse numa cadeira ao lado de uma mesa com equipamento para coleta de sangue. Imediatamente fez a retirada do material que queria para os exames como se fosse um autômato. Com outro gesto o mandou entrar numa das salas.
Por alguns minutos, Urando ficou de pé olhando em volta aquela sala toda branca com alguns equipamentos. Outro homem de branco entrou e com um sorriso o estendeu a mão indicando que o rapaz deveria sentar na cadeira que lembrava a de dentista. Durante vários minutos, o homem em silêncio fez varias radiografias da arcada dentaria e instalou eletrodos no peito do rapaz que transmitiam sinais para uma leitora ao lado.
Quando tudo estava concluído, o homem de branco o encaminhou para outra sala ao lado onde havia algumas poltronas. Novamente ele estava solitário e sem entender o que significavam aqueles exames. Esperou algum tempo e um outro homem vestido de maneira esportiva entrou sorrindo.
- Vamos lá?
- Lá... Onde? – Indagou o rapaz.
- Conhecer o seu apartamento! – O homem se mostrava descontraído.
- Quando começo o meu trabalho? – Perguntou desconfiado.
- Vai pegar o turno da manhã, antes precisamos de todos os exames prontos! – O homem estendeu a mão. – Sou Genaro, seu chefe de equipe.
Os dois saíram imediatamente pelo mesmo corredor por onde Urando entrara e pegaram um trem, saltaram duas estações adiante. No caminho mantiveram silêncio, no entanto, Genaro o observava com interesse. Quando saíram na rua, o movimento em torno deles era intenso, o rapaz se assustou, nunca imaginara aquilo já que a cidade grande era completamente desconhecida para quem vivia no orfanato.
- Você veio do orfanato Satter? – Indagou Genaro.
- Era bem diferente! – Disse o rapaz olhando em volta.
- Logo se acostuma com tudo isso! – Genaro fez um gesto com a cabeça pedindo que Urando o seguisse. – O apartamento para os novatos é bem pequeno. Moramos todos os trabalhadores de manutenção num único prédio, mas quase não nos encontramos, todo mundo trabalha em horário diversificado.
- Não entendo! – Urando coçou a cabeça.
- Nossa equipe trabalha uma semana pela manhã, na outra pela tarde e na outra pela noite. Assim, as outras equipes estão dormindo ou no trabalho quando folgamos.
- Quantos dias de folga?
- Por uma semana inteira, não foi a toa que caiu na minha equipe, que estará voltando amanhã da folga. – Disse Genaro abrindo a porta do prédio. – Vamos até a portaria, farei seu registro e poderá cadastrar a senha de liberação.
Eles ficaram diante de um monitor antigo com um teclado pequeno. Genaro passou o seu cartão numa fenda lateral e abriu o programa de cadastro em seguida passou o cartão de Urando e mandou que digitasse a senha. Concluído o registro, um pequeno compartimento abriu automaticamente ao lado do teclado e um novo cartão apareceu.
- Esse será seu cartão permanente, em qualquer lugar, o identificará. – Genaro pegou Urando pelo braço e entrou num elevador. – Ficará no vigésimo oitavo andar, apartamento 2818, será meu vizinho, eu estou 2811. Amanhã lhe apresento ao resto da equipe.
Assim que saltaram do elevador, entraram por um corredor extenso com portas numeradas em ambos os lados. Ao chegarem diante do 2818, Genaro indicou que o rapaz deveria introduzir o cartão num orifício lateral e feito isso, a porta destravou.
- É todo seu, espero que aproveite bastante. – Ele entrou. – Aqui ao lado tem o terminal para consulta de créditos bancários, se você precisar de alguma coisa, basta pegar aquele comunicador na parede e ligar 2811, eu venho lhe socorrer.
O apartamento era pequeno, apenas um grande salão com uma divisória feita por um balcão a onde ficava de um lado a cozinha, no outro uma cama, um armário e uma porta de acesso ao sanitário. No fundo, uma janela de pouco mais de um metro quadrado que dava para a janela de um outro prédio há pouco mais de quinze metros de distancia.
Antes de sair, Genaro explicou que a conta bancaria do rapaz possuía uma quantidade de créditos que daria para se alimentar por alguns dias e havia um restaurante barato no outro lado da rua, ao lado de um bar muito grande chamado Lamento.
- Lamento? – Urando fez uma careta.
- Existem bares para as pessoas conversarem seus problemas com autômatos, esse ai em frente é uma das filias mais famosa. – Explicou Genaro se divertindo com a falta de conhecimento do outro.
- Nunca imaginei uma coisa assim! – Urando jogou a sua sacola num canto.
- Como estou de folga, hoje vou cuidar de você, já vi que vai ficar confuso! – Genaro estendeu a mão. – Em uma hora, passo aqui e vamos almoçar.
Urando deu de ombros e ficou olhando a porta sendo fechada, pensando como se surpreendera diante da cortesia de Genaro. Um homem de quase quarenta anos que se mostrava atencioso para com um subordinado que acabava de chegar. Havia sido uma atitude muito simpática, afinal encontrara alguém que lhe parecia agradável.
Andando de um lado para o outro, Urando observou cada canto daquele apartamento cuidadosamente. Ali seria seu novo lar numa cidade estranha embora tão próxima. Esse isolamento no qual viviam todos os que eram criados no orfanato, foi uma das questões levantada por ele e quase lhe custou à primeira ameaça de expulsão. Agora não adiantava ficar lembrando do passado. Debruçando-se na janela, tentou imaginar como estavam alojados seus velhos amigos.
Na janela em frente, viu que uma mulher jovem estava fazendo a limpeza do apartamento, provavelmente era uma empregada do condomínio e por certo ele também teria essa regalia. A mulher ao ver o rapaz acenou irritada e fechou a cortina. Ficou por algum tempo distraído observando as janelas vazias a sua frente até que escutou alguém batendo na porta.

domingo, 25 de maio de 2008

Capítulo 04

Capítulo 04

O aniversário de uma pessoa no orfanato nunca era comemorado, apenas os amigos se abraçavam e logo esqueciam, mas aos dezoito anos a comemoração que eles sonhavam seria pela nova vida que os aguardava, mas os três estavam deprimidos e aquela data incomum, passaria por eles sem alegria, já estariam definitivamente separados. Estavam sendo encaminhados para os empregos antes do esperado.
Assim que os amigos partiram no dia seguinte, Urando tentou conter sua tristeza e solidão. Dentro de dois dias também estaria partindo, a diretora mandara avisar que o esperava para uma última conversa e entregar o seu cartão de apresentação e encaminhamento. Trabalharia na manutenção da Ferrovia Urbana, seria um pesadelo para infernizar sua vida já que sentia uma completa antipatia pelo local.
Seu sonho seria trabalhar com o controle de trafego, bem perto dos computadores que organizavam os deslocamentos dos expressos. No entanto, esse desejo estava reprimido, foi obrigado a arriscar seu futuro para salvar os amigos de uma atividade indigna. Talvez fosse melhor não aceitar o emprego e tentar por conta própria uma atividade que fosse gratificante, mas o mundo não perdoava os órfãos e dificultava o acesso aos que não possuíam uma especialização e recomendações escolares.
Na véspera da sua partida para o mundo lá fora, Urando sentia-se amargurado, sem os amigos e destinado para uma tarefa que não lhe empolgava. Como andava inativo, resolveu dar um passeio pelas proximidades da cidade satélite onde vivera até aquele momento. Não lhe permitiriam uma saída e por isso, teria de fazer sua última travessura, fugiria logo depois do almoço e só retornaria para o jantar.
Mesmo antes do almoço, a idéia de caminhar sem direção pelas ruas simétricas da cidade satélite, se mostrou inadequada, sem a companhia dos amigos não haveria a menor graça. Não possuía dinheiro já que até as diversões eram pagas com o cartão de identificação do orfanato e já estava sem créditos. Seria melhor aproveitar para andar pelo jardim, conversar um pouco com quem encontrasse e depois aguardar o momento da partida.
Como não queria se mostrar infeliz saiu do refeitório logo que acabou de comer e foi vagar sem destino pelo jardim, onde alguns professores costumavam passar o tempo de descanso. Na verdade, pretendia encontrar com Lin Ping, um chinês velho que ensinava defesa pessoal, gostava de ouvir as frases filosóficas cheias cautela e com objetivos prudentes que acalmavam o espírito. O encontrou sob uma arvore, lendo um livro de poemas acomodado num banco de cimento.
- Boa tarde, professor! – Disse enquanto sentava ao lado do velho.
- Esqueça suas aflições, vai conseguir encontrar o próprio caminho! – ele disse sem retirar os olhos do livro.
- Pareço aflito? – Indagou o rapaz.
- Sempre se fica aflito quando estamos prestes a fazer uma alteração nos rumos da vida. - O velho suspirou e sorriu. – Pense que a mudança é sempre renovadora e estimulante. Pena que estou velho demais para tudo isso, minha cabeça já não tem força para mudar.
- Vou sentir saudade de escutar suas palavras. – Disse Urando olhando em volta.
- Não devia lhe dizer, mas acho que ninguém vai escutar. – Ele fechou o livro. – Quando chegar à cidade tenha cuidado com as pessoas, elas podem não ser exatamente o que aparentam, são diferentes de tudo que conheceu até agora.
- Gostaria muito de continuar com as aulas de defesa pessoal...
- Eu não posso, tenho um contrato com a corporação. – O velho o interrompeu com ar pensativo. – Vou lhe dar o endereço de alguém que poderá ajudar.
Pegando uma caneta no bolso, escreveu o endereço e o nome da pessoa num pedaço de papel da embalagem de um chocolate. – Agora terá de pagar por tudo, o seu salário deve ser cuidadosamente planejado ou faltará dinheiro no bolso até para comer. Boa sorte!
O velho voltou a ler o livro enquanto Urando contemplava na mão o endereço. O nome da pessoa era estranho, Jumi, podia ser homem ou mulher, pensou em indagar, mas estava claro que o velho professor encerrara a conversa. Olhou para o comunicador do professor que estava no banco, deu um longo suspiro e foi continuar seu passeio.
Caminhou por entre as arvores sentindo que aquele mundo já não lhe pertencia. Nunca sentia falta de não ter conhecido sua mãe, coisa que seu amigo Bernardo vivia lamentando. Parou junto da cerca que separava o jardim onde as crianças pequenas costumavam brincar. A melancolia devia ser superada, afinal de contas um dia poderia começar a ser dono de sua própria vida, bastaria agir com cautela e não se portar como aquelas criaturas adoráveis e sem decisão, que viviam inocentes correndo de um lado para o outro naquele jardim cheio de brinquedos. Só agora percebia que a vida se tornara coisa seria.
Ao retornar para seu alojamento, sentia um grande vazio na alma, o silêncio a sua volta era quase total, os órfãos mais jovens que ainda permaneceriam por mais algum tempo na entidade, já haviam partido para a colônia de férias, os que esperavam encaminhamento profissional, sentiam a pressão os esmagando e se trancavam estudando na biblioteca ou nos alojamentos.
Na hora do jantar, pouco mais de uma dúzia de pessoas apareceram, quase todas se cumprimentavam timidamente com receio de infringir algum regulamento desconhecido. Não pretendiam estragar as suas vidas correndo riscos no momento final já que em breve poderiam ser livres e caminhar pelas ruas da grande cidade onde deveriam trabalhar.
As ultimas horas eram mais longas, pareciam infindáveis. Adormeceu naquela noite com muita angustia lhe apertando a alma de encontro ao medo, se dando conta de que embora vivesse toda a vida naquele orfanato, quase não conhecia os outros rapazes e moças. Não sentiria saudade deles, apenas seus companheiros de alojamento, Bernardo e Soleno, faria falta. Ao tentar explicar para si mesmo o temor que lhe assaltava o espírito, se permitiu chorar sem restrição, relembrando o tempo de criança, inocente e sem a menor consciência do futuro real.

sábado, 24 de maio de 2008

Capítulo 03

Capítulo 03

Por dois dias, eles se mantiveram quietos aguardando sempre com sobressalto um possível chamado da Diretora Heloisa que os puniria pela falcatrua na hora do teste final. Como nada acontecera, relaxaram e retomaram a alegria que sempre mantinham ao lembrarem que eram os últimos dias de orfanato.
No entanto, essa alegria durou apenas três dias. No final da manhã eles foram convocados para uma audiência com a diretora pouco depois do horário de almoço. Os três se assustaram, no entanto, Soleno que era sempre muito calmo, os advertiu da necessidade de manter a negação como uma arma, eles poderiam ter desconfiado, mas dificilmente teriam como provar. Urando esboçou o discurso que fariam. Deviam alegar terem estudado juntos e não encontraram dificuldades no testes.
- Essa será a verdade que teremos de nos convencer primeiro, antes de conversar com a diretora. – Disse Bernardo aflito. – E se quiserem outro teste?
- Espero que a lua não encontre o sol! – Disse Urando com ar pensativo. – Vamos nos ferrar se eles descobriram alguma coisa.
Estavam tão agoniados e nervosos, que mal conseguiram engolir um pouco da comida, os olhos permaneciam grudados nos ponteiros dos relógios dos corredores e refeitório. Pontualmente às duas da tarde, entraram na sala de espera do gabinete da diretora tentando se mostrarem calmos e confiantes. O secretário, o velho Facunha, os olhou por cima dos óculos caídos no nariz e sorriu. Imediatamente anunciou pelo comunicador a chegada dos rapazes depois disse em tom preocupado.
- A coisa parece grave! – Ele olhou em volta e abaixou os olhos para os papeis sobre sua mesa.
- Venham! – Disse Heloisa de maneira seca abrindo a porta do gabinete acenando para os três.
Assim que eles passaram pela porta, ela fechou e indicou com a mão um sofá no canto da sala. Em seguida, sentou numa poltrona e ficou em silêncio olhando o teto enquanto esfregava as mãos tentando descobrir a melhor maneira de iniciar a conversa.
- Estamos com um problema e gostaria muito da ajuda de vocês!
- Se for possível...! – disse Urando sacudindo os ombros.
- Sabemos que vocês três se comunicaram durante os testes finais, mas não conseguimos saber como... – ela encarou demoradamente Urando. – Mesmo sem provas, podemos tornar a vida de vocês mais difícil.
- Não consigo entender o que pretende com essa acusação. – Disse Soleno nervoso.
- Deixe de ser cretino! – Heloisa disse com irritação. – Não pretendo perder tempo, sei que um de vocês vai querer me contar os detalhes dessa artimanha e posso garantir, que só um culpado será punido. Preciso de um exemplo, em caso contrário, amanhã teremos muitos problemas como esse para resolver.
- Estudamos juntos... – Bernardo gaguejou.
- Deixe de falar asneira, Bernardo! – Interrompeu Heloisa. – Você e Soleno saiam agora, preciso conversar com Urando. – ela se impacientou. – Me aguardem, depois chamo de volta.
Os olhos dos dois se fixaram rapidamente em Urando que com um gesto de cabeça mandou que saíssem. A diretora deu um longo suspiro ao ouvir a porta se fechando e voltou a ficar contemplando o teto e esfregando as mãos.
- Meu menino! – Ela falou com voz delicada. – Tenho tido muitos problemas por sua causa tentando justificar para doutora Gervina suas atitudes impulsivas e fora de controle nos últimos seis ou sete anos, mesmo assim, não consigo deixar de gostar de você. – ela levantou e ficou andando por algum tempo em silêncio, repentinamente se voltou para o rapaz. – Posso solicitar um novo teste individual e tenho certeza que seus amigos vão se sair muito bem – Disse com ironia.
- Não sei o que pretende descobrir. – Indagou Urando com firmeza.- O que realmente quer?
- Os detalhes, a maneira como tudo aconteceu. – Ela deu de ombros. – Tenho uma proposta que talvez lhe convença de uma vez por todas.
- Estou ouvindo! – Disse Urando entediado.
- Seus amigos serão normalmente encaminhados para os empregos oferecidos no nível de conhecimento deles, quanto a você, tenho certeza que poderei relevar, embora não possamos oferecer o que havíamos planejado. – ela voltou a sentar na poltrona. – Com seus conhecimentos, poderíamos lhe oferecer uma vaga de controlador do sistema ferroviário municipal, a Satter tem mais de metade das ações, no entanto agora só poderemos esperar que se torne um bom mecânico de trilhos e esquecemos tudo que aprontou até agora.
Enquanto a diretora fingia uma preocupação exagerada, Urando sentia que estava sendo manipulado, mas não via uma saída naquele momento, deveria ser prudente para evitar problemas maiores para seus amigos. Estava numa armadilha na qual não poderia se mostrar inteiramente como o rebelde que sempre fazia de sua personalidade um problema para o orfanato, precisava recolher suas armas, aquela seria uma batalha que não poderia manter.
- Quais os empregos para meus amigos? – Indagou repentinamente.
- O idiota do Bernardo, poderia ser contratado pelas industrias químicas, será um bom controlador de estoques. Quanto ao nosso querido Soleno e suas poucas habilidades mecânicas, tem futuro no Complexo de Vestuário profissional, pelo menos se mostrou competente com os desenhos.
- Acho que não podemos negociar! – Disse Urando com desdém.
- Que pena! – Ela sorriu com cinismo fingindo não ter escutado o rapaz. - Eles ficarão sem os certificados de qualificação, vocês três serão expulsos da escola antes de concluírem o curso. – Disse Heloisa indicando a porta com a mão para Urando. – Marcarei novos testes isolados, na próxima semana.
- Está certo! – Disse Urando com ar de preocupação.
- Estou esperando! – Disse Heloisa cruzando as mãos sobre o peito.
- Usei um receptor de alta freqüência e um transmissor de impulsos magnéticos, acoplados num único embolo gerador de sinais cíclicos, para controlar tudo lancei mão apenas de um pequeno apito para cachorros.
- Não estou entendendo. – Heloisa coçou a cabeça.
- Joguei pela janela um dardo dirigível munido com um embolo receptor e um transmissor. E a deixei aberta na véspera, acertei bem ao lado da luminária e toda vez que eu soprava o apito surdo, o ciclo da corrente elétrica se alterava e a luz piscava, assim era só contar quantas vezes a sombra de cada um oscilava de maneira muito rápida em intervalos constantes. – Ele suspirou. – Uma alternativa simples para quem esperava sofisticação.
- Não nego que foi esperto! – Heloisa suspirou. Que desperdício de talento!
- Fiz a minha parte, espero que a senhora faça o que me prometeu!
- Acredito que poderia alçar grandes pretensões, mas sua rebeldia é um entrave. Vou sentir saudades de sua petulância, mas não esqueça que sempre procurei uma maneira de aliviar seus pecados. – Ela estendeu a mão para o rapaz. – Lá fora, tenha mais cuidado, nem sempre podemos vencer um confronto se não estivermos realmente preparados!
- Obrigado pelo conselho! – ele saiu da sala e deixou a diretora pensativa.
Ao passar pelos amigos que o seguiam com olhos esbugalhados e muita tensão nos semblantes, fez um sinal positivo com o polegar e voltou para seu alojamento. A chuva no lado de fora parecia que nunca mais cessaria. Enquanto caminhava pelo corredor deserto do orfanato, refletia sobre a vida e não gostava de saber que seu destino estava de acordo com o desejo da Corporação Satter, sentia-se como um animal aprisionado que engordava para servir de alimento para uma fera faminta. Assim que deitou na sua cama, ficou contemplando pela vidraça a paisagem triste de um dia de inverno.
Quando seus amigos retornaram, estavam saltitantes, se mostravam eufóricos com as indicações de emprego que a diretora Heloisa havia oferecido. Ao perceberam a melancolia de Urando, esfriaram a alegria e congelaram seus sonhos. Depois de insistirem muito para saber o que acontecia ao amigo escutaram uma explicação pouco convincente.
- Esqueçam minhas manias, estou como sempre imaginando as segundas intenções de cada ação da Diretora.
- Recebemos nossos cartões de encaminhamento. – Disse Soleno mostrando o cartão.
- Ao nos apresentarmos teremos de cadastrar uma senha permanente com oito dígitos. – Completou Bernardo. - Você recebeu o seu? – Indagou Soleno
- Ainda não. – Urando estendeu a mão e pegou o cartão de Bernardo. – Eles são diferentes desses que estamos acostumados.
- Esses números sobre a barra de leitura ótica, são as especificações profissionais do local de trabalho, setor, endereço... – Apontou Soleno.
- Vou anotar! – Disse Urando pegando seu pequeno agendador eletrônico.
- Não poderá identificar nada, não tem acesso ao banco de dados. – Disse Bernardo dando de ombros enquanto recebia o seu cartão de volta.
- Aqui dentro não tenho mais acesso, mas nada me garante que lá fora eu não possa fazer uma checagem e encontrar vocês. – Urando pegou o cartão de Soleno.
- Vamos nos separar amanhã logo cedo. – Soleno sentou na cama ao lado do amigo. – Teremos de marcar um encontro, lá fora estaremos sem ter como promover nossos encontros.
- A cidade grande vai separar nossas vidas! – Exclamou Bernardo melancólico. – Vou sentir muita saudade de nossas conversas, tenho medo do mundo.
- Acho uma boa idéia manter contato se for possível! – Disse Urando.
- Tudo é possível! Dentro de um mês, nos encontraremos na estação de trem da escola. – Soleno coçou a cabeça. – Perto das escadas.
- Combinado! – Bernardo sorriu se animando. – Aproveitamos e comemoramos com atraso a nossa independência.
- Por mim, tudo bem! – Urando estendeu a mão para os amigos.

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Capítulo 02

Capítulo 02

Olhando fixamente pela janela do trem, Urando esperava com ar ansioso a chegada da estação onde saltaria. Em pouco mais de dez minutos, já respirava aliviado, detestava ficar muito tempo naqueles túneis cheios de trilhos eletrificados. Uma das possibilidades de emprego que lhe acenaram, era exatamente na manutenção da ferrovia urbana, se arrepiou e estremeceu apertando os olhos na hora que saia novamente para a luz do dia.
Atravessou a rua e entrou no grande prédio onde funcionava a Escola Preparatória Satter, Seus amigos o aguardavam apreensivos na porta. Todos se abraçaram e entraram apressados bem na hora que a sirene foi disparada anunciando o início do horário de aulas. Por quase três horas, eles estiveram suando e mordendo os cantos das unhas enquanto marcavam as respostas corretas no ultimo teste de verificação do ano letivo.
A sala era ampla e climatizada embora o ar estivesse denso, se notava aflição nos olhares onde mais de quarenta estudantes estavam terminando o curso profissionalizante. Pouco mais de metade da turma, era oriunda do orfanato. Em comum, todos completariam dezoito anos ou já haviam feito aniversário e aguardavam os chamados da Corporação. Os outros eram alunos da comunidade pobre da cidade e tentavam alcançar uma vida mais digna com uma profissão definida, poucos tentariam uma vaga nas universidades públicas.
Quase ao mesmo tempo, os três amigos entregaram o teste com as respostas concluídas. No controle de monitoramento do circuito interno das salas, o fiscal coçou a cabeça. Ele sabia que havia algo errado já que conhecia bem os três jovens, mas não conseguia encontrar a maneira como eles estavam se comunicando. Sua desconfiança beirava o limite da especulação com situações ridículas.
Entrar na sala com algum equipamento eletrônico seria impossível, mas a genialidade de Urando era famosa na escola, assim como as limitações de Bernardo e de Soleno. O que despertara a curiosidade inicial do fiscal controlador havia sido a entrega simultânea dos testes e a demora de Urando para concluir. Ele ligou o comunicador e solicitou a presença da diretora do orfanato, professora Heloisa.
Na rua, Bernardo saltitava todo feliz e aliviado, o plano de Urando havia sido a sua salvação, se dependesse da sua cabeça, estaria até agora com as respostas em branco. Soleno que era mais tímido, apenas sorria e abraçava os amigos, mas logo ficou intrigado com a expressão preocupada de Urando.
- O que lhe preocupa? – Indagou detendo o amigo pelo braço.
- Vocês deviam ter aguardado eu sair da sala para entregar os testes. – Disse Urando maneando a cabeça lentamente. – Isso poderá despertar muita suspeitas.
- Deixe de ser pessimista! – Exclamou Bernardo. – Minha mãe lhe agradece de onde estiver nos olhando.
- Agora não adianta lamentar! – Soleno suspirou profundamente.
- Que a lua não encontre o sol! – Disse Urando como sempre concluía uma conversa diante de um possível problema.
Naquela noite, eles conversaram até muito tarde, estavam hipnotizados olhando pela janela do alojamento a chuva que continuava caindo no lado de fora. O céu estava completamente encoberto por nuvens grossas e gordas escondendo as estrelas. Pouco antes de deitarem para dormir, Urando entregou o livro que estava lendo para Soleno.
- Já acabei, pode devolver na biblioteca.
- O que achou? – Perguntou Soleno pegando o livro das mãos do amigo.
- Muito interessante, mas acho que Milino Santiago é um escritor que tenta confundir o leitor.
- Como assim? – Indagou Bernardo.
- Ele narra uma história no passado avançando no futuro, essa conversa sobre alienígenas se infiltrando na terra é muito pouco provável. – Urando coçou o queixo. – Se os seres de outro planeta possuem tecnologia avançada ao ponto de nos alcançarem, não perderiam tempo com nossa cultura ainda incipiente.
- Esqueça o lado lógico, o bom está na aventura! – Suspirou Soleno guardando o livro na gaveta do armário ao lado da cama.
- A trama investigativa é bem elaborada! – Exclamou Urando pensativo. – Gostei muito do cuidado do autor em não perder tempo com detalhes que nada significavam para o conteúdo principal. Parece que ele aproveitou dados reais muito especulados na época.
- No passado se tornou muito comum, pessoas afirmarem terem visto naves, até se questionou um tal “projeto X” ou coisa semelhante. – Disse Bernardo.
- Conheço a história! – Urando sacudiu a cabeça de um lado para o outro. – Se eles vieram até aqui, nos abandonaram, éramos muito ignorantes e perigosos para eles.
Todos se entreolharam sorrindo e cada um se acomodou na cama tentando alcançar o sono. Mas Bernardo estava ansioso demais para adormecer e ficou por muito tempo revirando de um lado para o outro. Dentro de uma semana comemoraria seu aniversário de dezoito anos e seria o primeiro a ser chamado, teria de abandonar os amigos. O seu consolo poderia consistir na possibilidade de que logo em duas semanas depois seria a vez de Soleno e no mês seguinte Urando.
Em breve poderiam se reunir longe do orfanato sem ter cuidado com o que conversavam, estariam definitivamente no mundo real. Olhou mais uma vez para o amigo Urando que já adormecera, sabia que sem ele não lhe restava uma esperança de vida digna. Dando um longo suspiro, virou-se de lado e adormeceu tentando acreditar que tudo estava resolvido e nada seria descoberto embora o medo se instalasse em seu coração.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Capítulo 01

BAR LAMENTO

Capítulo 01

Naquela manhã de muita chuva, Urando, muito agitado se preparava para sair. Enquanto escovava os dentes, olhou seu reflexo no espelho, já estava com a barba começando a se tornar fechada, em pouco tempo, poderia deixá-la crescer para se confirmar diferente dos padrões estéticos exigidos no orfanato Satter. Bastava ter um pouco de paciência e logo se livraria daquela prisão disfarçada, que se constituíra na sua única casa desde que nascera.
Toda sua vida acontecia de maneira incomum em comparação aos outros meninos e meninas, não aceitava aquelas regras rígidas impostas para cada coisa por ali sem uma reflexão. Ficava furioso quando tentavam manipulá-lo, queria sempre saber o motivo de cada determinação e as discutia com muita sagacidade e argumentos eficazes. Esse seu comportamento era um tormento para a direção da entidade que não poupava o rapaz cada vez que lhe surpreendiam infringindo normas. Os castigos eram propositadamente cansativos, o deslocavam para serviços comunitários como jardinagem e pequenos reparos.
Havia em seu coração uma angustia profunda todas as vezes que acordava, sabia que nunca seria um atleta para ser privilegiado na hora de se profissionalizar, embora fosse alto, seu porte elegante e altivo, não escondia a força da mente brilhante, era ágil nos movimentos e no raciocínio, mas não gostava da obrigação em praticar esportes de competição. Seus cabelos negros e longos só lhe serviam de pretextos para reclamações dos professores todos os dias na escola, mas seu espírito rebelde não cedia.
Olhou em volta o alojamento, ambiente frio e sem nada de pessoal naquele orfanato de paredes nuas revestidas de cerâmica cinza. Era o lar onde vivia com mais dois amigos. Agora já começava a se tornar apertado e sufocante. Completaria em algumas semanas dezoito anos e teria de encarar o mundo real. Estava ansioso, mas antes teria de garantir aos amigos que também estavam na mesma condição, um rendimento confortável nos testes finais do curso que faria as seleções para os empregos futuros.
Dando de ombros, fechou a porta e correu para a rua olhando o relógio, só teria pouco mais de vinte minutos para chegar à escola. Havia dormido muito tarde dando os últimos retoques no transmissor que teria de utilizar para passar as respostas corretas aos amigos. Não poderia entrar com ele pela manhã e assim, passou parte daquela noite, inteiramente ocupado.
Seus amigos, Bernardo e Soleno que já haviam saído mais cedo, não eram muito inteligentes, mas precisavam ter notas muito boas para conseguir um emprego melhor ao sair do orfanato. Mesmo sabendo dos riscos, não os abandonaria, se qualquer coisa desse errado, seria mais fácil para ele dar uma guinada na vida. Sabia que dificilmente poderia seguir um caminho profissional que desejava, seu histórico conflitante e rebelde no orfanato o desabonava.
Principalmente no ultimo ano, se envolvera numa campanha contra as normas do orfanato e isso desagradara a Doutora Gervina, presidente regional da Corporação Satter que mantinha a entidade onde morava. Por diversas vezes fora advertido pela diretora do orfanato, professora Heloisa, sobre os problemas que teria tentando fazer o mundo inteiro desacreditar que o orfanato era uma grande obra assistencial.
Para Urando, toda aquela caridade aparente oferecida aos filhos órfãos de empregados falecidos, era uma fachada para preparar serviçais obedientes, de segunda categoria. Eles, por mais preparados que estivessem, os empregos oferecidos ao completarem dezoito anos, sempre seriam aqueles que ninguém mais desejava. Além disso, havia o pagamento de um terço do salário por cinco anos para ajudar na manutenção da entidade.
Ele tentou denunciar publicamente esse tipo de obrigação, mas foi calado por uma ordem superior que o avisou da possibilidade de uma expulsão sumária. Sabendo que estava em situação de desvantagem, onde até a imprensa não lhe dava ouvidos, se acomodou aguardando uma chance mais produtiva ou pelo menos conseguir se livrar do ultimo ano e constituir uma profissão.
Ao sair quase correndo do seu quarto para não perder o horário do trem, Urando estava sentindo que sua vida não era como imaginava, havia cordões invisíveis que o manipulavam na direção de um futuro surpreendente. Seu coração disparado, só desejava que a vontade de vencer, o jogasse sempre para cima, não permitindo que afundasse num poço escuro de águas imundas.

quarta-feira, 21 de maio de 2008