quinta-feira, 22 de maio de 2008

Capítulo 01

BAR LAMENTO

Capítulo 01

Naquela manhã de muita chuva, Urando, muito agitado se preparava para sair. Enquanto escovava os dentes, olhou seu reflexo no espelho, já estava com a barba começando a se tornar fechada, em pouco tempo, poderia deixá-la crescer para se confirmar diferente dos padrões estéticos exigidos no orfanato Satter. Bastava ter um pouco de paciência e logo se livraria daquela prisão disfarçada, que se constituíra na sua única casa desde que nascera.
Toda sua vida acontecia de maneira incomum em comparação aos outros meninos e meninas, não aceitava aquelas regras rígidas impostas para cada coisa por ali sem uma reflexão. Ficava furioso quando tentavam manipulá-lo, queria sempre saber o motivo de cada determinação e as discutia com muita sagacidade e argumentos eficazes. Esse seu comportamento era um tormento para a direção da entidade que não poupava o rapaz cada vez que lhe surpreendiam infringindo normas. Os castigos eram propositadamente cansativos, o deslocavam para serviços comunitários como jardinagem e pequenos reparos.
Havia em seu coração uma angustia profunda todas as vezes que acordava, sabia que nunca seria um atleta para ser privilegiado na hora de se profissionalizar, embora fosse alto, seu porte elegante e altivo, não escondia a força da mente brilhante, era ágil nos movimentos e no raciocínio, mas não gostava da obrigação em praticar esportes de competição. Seus cabelos negros e longos só lhe serviam de pretextos para reclamações dos professores todos os dias na escola, mas seu espírito rebelde não cedia.
Olhou em volta o alojamento, ambiente frio e sem nada de pessoal naquele orfanato de paredes nuas revestidas de cerâmica cinza. Era o lar onde vivia com mais dois amigos. Agora já começava a se tornar apertado e sufocante. Completaria em algumas semanas dezoito anos e teria de encarar o mundo real. Estava ansioso, mas antes teria de garantir aos amigos que também estavam na mesma condição, um rendimento confortável nos testes finais do curso que faria as seleções para os empregos futuros.
Dando de ombros, fechou a porta e correu para a rua olhando o relógio, só teria pouco mais de vinte minutos para chegar à escola. Havia dormido muito tarde dando os últimos retoques no transmissor que teria de utilizar para passar as respostas corretas aos amigos. Não poderia entrar com ele pela manhã e assim, passou parte daquela noite, inteiramente ocupado.
Seus amigos, Bernardo e Soleno que já haviam saído mais cedo, não eram muito inteligentes, mas precisavam ter notas muito boas para conseguir um emprego melhor ao sair do orfanato. Mesmo sabendo dos riscos, não os abandonaria, se qualquer coisa desse errado, seria mais fácil para ele dar uma guinada na vida. Sabia que dificilmente poderia seguir um caminho profissional que desejava, seu histórico conflitante e rebelde no orfanato o desabonava.
Principalmente no ultimo ano, se envolvera numa campanha contra as normas do orfanato e isso desagradara a Doutora Gervina, presidente regional da Corporação Satter que mantinha a entidade onde morava. Por diversas vezes fora advertido pela diretora do orfanato, professora Heloisa, sobre os problemas que teria tentando fazer o mundo inteiro desacreditar que o orfanato era uma grande obra assistencial.
Para Urando, toda aquela caridade aparente oferecida aos filhos órfãos de empregados falecidos, era uma fachada para preparar serviçais obedientes, de segunda categoria. Eles, por mais preparados que estivessem, os empregos oferecidos ao completarem dezoito anos, sempre seriam aqueles que ninguém mais desejava. Além disso, havia o pagamento de um terço do salário por cinco anos para ajudar na manutenção da entidade.
Ele tentou denunciar publicamente esse tipo de obrigação, mas foi calado por uma ordem superior que o avisou da possibilidade de uma expulsão sumária. Sabendo que estava em situação de desvantagem, onde até a imprensa não lhe dava ouvidos, se acomodou aguardando uma chance mais produtiva ou pelo menos conseguir se livrar do ultimo ano e constituir uma profissão.
Ao sair quase correndo do seu quarto para não perder o horário do trem, Urando estava sentindo que sua vida não era como imaginava, havia cordões invisíveis que o manipulavam na direção de um futuro surpreendente. Seu coração disparado, só desejava que a vontade de vencer, o jogasse sempre para cima, não permitindo que afundasse num poço escuro de águas imundas.